O homem que transforma papel em refeições escolares

Fomos conhecer quem estava do outro lado da nossa Campanha Reutilizar. Encontrámos José Batalha e um conceito de comunidade comovente, que o fez e faz mover montanhas (de papel) para ajudar crianças. Conheça aqui esta história e saiba como juntar-se a esta tão nobre causa.

Entrámos com a escola vazia. O silêncio imperava por entre os corredores de pedra e, cá fora pelo jardim, não se ouvia uma mosca. Passados uns minutos, chegou José Batalha, presidente da Associação de Pais da Escola Básica e Secundária Ibn Mucana e presidente da Federação das Associações de Pais do Concelho de Cascais, com uma boa disposição e uma energia contagiantes. O espaço ganhou instantaneamente vida.

Conhecíamos o seu nome mas não lhe tínhamos, até hoje, atribuído uma cara. Trabalha pela calada e não gosta de falar de si. Mas a curiosidade era demasiada: afinal, quem era o homem por detrás da recolha de manuais escolares no concelho de Cascais? Como tinha aqui chegado? O que o movia? Foi o que decidimos perceber, num final de tarde tão inspirador quanto comovente.

Aos 64 anos, “32 em cada perna”, como nos explicou, José não sabe estar parado. “Nunca soube e não era agora que havia de aprender”. Foi por isso – e por ter uma enorme vontade de ajudar – que decidiu fazer dos miúdos (desta escola e de mais uma quantidade de outras) uma prioridade. Era com ele que trabalhávamos já há uns anos, no âmbito da Campanha Reutilizar, e foi por isso que decidimos fazer-lhe uma visita e ficar a saber mais sobre o trabalho que desenvolve nas escolas de Cascais. Contudo nunca poderíamos adivinhar a dimensão. Mas comecemos do princípio!

(…) não me parece normal – nem me parecia sequer possível, na altura – que num país da União Europeia, em pleno século XXI, num concelho tão desenvolvido como o de Cascais, haver crianças a desmaiar de fome.

Estávamos em Janeiro de 2013. “Cheguei à escola numa segunda-feira e contaram-me que uma menina tinha desmaiado durante a primeira aula da manhã. Tinha desmaiado de fome, com 13 anos, numa aula de ginástica. Durante o fim de semana não tinha comido nada. Ainda explicou que abdicou da pouca comida que havia em casa para a deixar para a irmã mais nova.” Os olhos de José encheram-se de lágrimas. “Já falei sobre isto várias vezes, mas é impossível não reagir quando recordo este momento”, explicou. “Fiquei em estado de choque, porque não me parece normal – nem me parecia sequer possível, na altura – que num país da União Europeia, em pleno século XXI, num concelho tão desenvolvido como o de Cascais, haver crianças a desmaiar de fome”. Ficámos arrepiados ao ouvi-lo. Podia ter engolido em seco, culpado o sistema e olhado para o lado, mas José decidiu lutar por esta rapariga, que nunca chegou sequer a saber quem era. Para ele, foi uma criança sem rosto que lhe abriu os horizontes para uma realidade assustadoramente próxima de si (e de todos nós): esta rapariga não era a única. Não soube ficar quieto (e ainda bem que não).

“Reuni com a escola e disse que o que tinha acontecido era inadmissível. Que era preciso estas crianças serem identificadas pelos seus professores e diretores de turma e que era imperativo que tivessem o pequeno-almoço fornecido pela escola, todos os dias. A resposta foi dar à falta de verba…” Resposta errada. José decidiu arranjar forma de criar essa verba, acabando por lançar um projeto de recolha de  materiais, que une a solidariedade à sustentabilidade – e conta com a ajuda de toda a comunidade escolar.

Penso que uma comunidade só existe verdadeiramente quando consegue olhar para os membros mais frágeis que a integram e arranjar forma de lhes prestar solidariedade.

“Uma história destas não podia deixar ninguém indiferente”, explicou José. “Penso que uma comunidade só existe verdadeiramente quando consegue olhar para os membros mais frágeis que a integram e arranjar forma de lhes prestar solidariedade. E andei a matutar nesta ideia até que me lembrei de que podíamos recolher papel, vendê-lo, e usar esse lucro para comprar recheio para sandes.” E deu-se o milagre: José transformou papel em fiambre e queijo, como o próprio nos explicou, para alimentar crianças.

Foi por isto que quando descobrimos que, dos 3754 manuais escolares que recolhemos este verão no CascaiShopping, com a ajuda de todos os nossos visitantes, apenas 787 tinham sido atribuídos a novos estudantes, não ficámos nada preocupados. “Alguns deles estavam danificados, outros eram já antigos. Por isso, uma percentagem dos manuais escolares foi de facto parar às mãos de alunos que precisavam deles para este ano, mas muitos outros acabaram por ir para o papelão. Mas uma coisa posso garantir: nenhum foi desperdiçado. Nesta escola, como já perceberam, a reciclagem acaba em queijo e fiambre.” E bem mais do que isso, já que, cinco anos depois, José consegue providenciar, além de pequenos-almoços, almoços e lanches, alguns pedidos especiais como óculos, terapias da fala ou cadeiras de rodas a crianças que anonimamente lhe vão pedindo ajuda. No ano letivo que terminou este verão, estavam referenciados 74 miúdos, que recebiam algum tipo de ajuda diária. Ficámos de coração cheio por perceber que, apesar de sermos uma pequena gota no oceano, fazemos parte de uma corrente positiva, que melhora a vida de crianças e famílias do nosso concelho. E você também!

Se participou nesta campanha de recolha de manuais, esta é a nossa oportunidade para lhe agradecer e mostrar que o seu contributo teve a maior das importâncias. Para nós, para o José e principalmente para as 74 crianças que, anonimamente, beneficiam deste milagre da multiplicação. Veja o vídeo e fique a conhecer o homem por detrás da obra.

Se ficou com vontade de se juntar a esta causa, o que tem a fazer é muito simples: entregar o papel e cartão que for juntando na Escola Básica e Secundária Ibn Mucana, em Alcabideche. Aceitam-se também tampinhas de garrafas, que servem exatamente o mesmo propósito. Para o ano, pode voltar a participar na nossa recolha de manuais escolares! Vamos ajudar?

Fotografia e vídeo de Mariana Alvarez Cortes

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